Atlântico Pardo? (Texto de Miguel Vale de Almeida – Iscte e CRIA)

No ano 2002, em Trânsitos Coloniais[1], usei a expressão num capítulo intitulado “O Atlântico Pardo: Antropologia, Pós-colonialismo e o Caso ‘Lusófono’”. Tratava-se assumidamente de um take da expressão “Black Atlantic” de Paul Gilroy[2]. Um take, mas também um pun. A expressão pode ser interpretada de múltiplas formas, consoante o leitor. Mas não desejava que fosse interpretada de certas formas. Talvez alguns pontos ajudem a esclarecer – e eventualmente a tornar útil a expressão.

  1. O volume Trânsitos Coloniais foi o resultado de dois encontros – um em Campinas, no Brasil, e outro na Arrábida, em Portugal – entre antropólogos e historiadores de ambos os países preocupados em refletir sobre os debates pós-coloniais da época.
  2. A questão que nos preocupava a todos tinha duas vertentes em equilíbrio tenso: (a) como abordar especificidades do processo de expansão do estado português (expressão usada por Pina-Cabral); (b) como evitar reproduzir crenças lusotropicalistas nesse processo, e criticá-las.
  3. No caso do meu texto acrescentei, por assim dizer, uma terceira linha de tensão: (c) como evitar que as abordagens pós-coloniais ficassem prisioneiras do anglocentrismo, permitindo contributos de áreas académicas e linguísticas não-hegemónicas, como as de língua portuguesa. E fazendo-a – em continuidade com a alínea (b) acima – sem reproduzir os intuitos políticos e identitários do estado português democrático em torno do uso da expressão “Lusofonia”.
  4. Resolvi inspirar-me em Paul Gilroy e na sua extraordinária obra. Tal permitia que o ponto de ancoragem fosse a experiência negra do tempo do comércio de pessoas escravizadas, da economia de plantação, do colonialismo e do pós-colonialismo e não, como tem sido tradicional em Portugal, o estado português e as narrativas de identidade nacional construtoras de branquitude. Digamos, para continuar com alguma ironia, que substituí as leituras e apropriações de Gilberto Freyre por uma leitura e apropriação de Paul Gilroy.
  5. Tal estratégia permitiu (creio, ou desejo) introduzir a ideia de multiplicidade nas experiências do mundo do Atlântico Negro, multiplicidade essa sem dúvida resultante das forças de poder, violência e opressão de diferentes colonialismos e de diferentes experiências de independências americanas feitas pelos descendentes dos colonizadores, como no caso brasileiro, e africanas.
  6. Prosseguindo o gesto irónico (creio firmemente na vertente literária das ciências sociais e, mais ainda, da antropologia), recorri à expressão “Pardo”, que tem múltiplos sentidos:

(a) No Brasil foi (e é…) usada como classificação racial nos censos e na auto- e hétero-identificação das pessoas no sistema local. Ela significa misto de “negro” e “branco” ou alguém localizado em pontos intermédios do “continuum de cor”. Como o sistema de classificação racial é intrinsecamente também um sistema de distribuição de poder e estatuto, “pardo” acaba significando uma posição intermédia, ambígua e instável.

(b) No Portugal contemporâneo o termo perdeu essa conotação, não tendo permanecido nem como termo usado na retórica sobre miscigenação. “Pardo”, em Portugal, evoca, sim, expressões como “de noite todos os gatos são pardos” ou “eminência parda”.  Juntando as duas aceções, brasileira e portuguesa,  era à ambiguidade que desejava aludir.

  1. Em que consiste essa ambiguidade? Num elogio da miscigenação lusotropical? No elogio duma excecionalidade do processo colonial português? Numa celebração da cordialidade racial brasileira? No universalismo intercultural da narrativa portuguesa pós-25 de abril de 1974? Não. Tratava-se, sim, de ver as especificidades (certas formas de resistência, de criatividade, de perceção, de narrativas, etc.) como resultantes de relações político-económicas – de poder – concretas. Essas relações denotam simultaneamente a forma como o “império” português foi organizado e gerido (por exemplo, o papel do Brasil português no mesmo, nomeadamente em África e no tráfico de pessoas escravizadas) e a forma como o império português se inseria numa dinâmica de poder relativo com outros impérios (nomeadamente o Britânico). Posições de semi-periferia, recorrendo ao conceito de I. Wallerstein.

Em suma: que “Atlântico Pardo” não seja visto como um “conceito”, mas sim como um artifício retórico que permita navegar nas águas pardacentas  em que se misturam várias correntes: a do lusotropicalismo e da “democracia racial” que criticamos; a da crítica pós-colonial (e, hoje, anos depois da publicação daquele artigo, a da crítica decolonial); a da desigualdade de poder entre tradições académicas nacionais e linguísticas;  a das diversas (mas também, por vezes, estrategicamente unidas) experiências das comunidades negras e afrodescendentes. É como pensar o samba e o rap no mesmo quadro de produção cultural negra, mas também saber distinguir os processos históricos, culturais e político-económicos da produção de cada um.

Miguel Vale de Almeida (Iscte e CRIA)

[1] Bastos, C., M. Vale de Almeida e B. Feldman-Bianco, eds., Trânsitos Coloniais: Diálogos Críticos Luso-Brasileiros. Lisboa: Imprensa de Ciências Sociais.

[2] Gilroy, P., 1993, The Black Atlantic. Cambridge: Harvard University Press.

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